Desconheço o nome que consta do BI (ou do cartão de cidadão). Todos o conhecem por ‘Ervilha’. E é também assim que se apresenta.
Pertence à classe dos designados ‘arrumadores de automóveis’.
Pertence à classe dos designados ‘arrumadores de automóveis’.
A figura é frágil, a pele macilenta, o cabelo esparso, comprido e desgrenhado. Aparenta estar na casa dos 50, mas é sabido que nestes casos a aspereza da vida impõe um retrato raramente fiável. Os olhos pequenos, escuros e fundos, sempre inquietos, alternam incessantemente entre o interlocutor e o horizonte, entre o pestanejar ritmado e o arquear das sobrancelhas. O corpo é um magro cabide, que sustenta roupas sempre largas e de tamanho desproporcionado.
Paradoxalmente, convive lado a lado com a esquadra da polícia. ‘Sem espinha’ – já mo disse. Todos julgamos saber o que o move. Saberemos? Persegue-nos desde a saída do automóvel até ao limite do estacionamento. Não olha para a moeda que arbitrariamente lhe colocamos na mão e aborda-nos com inesgotável assunto. Não importa o dia ou o tempo decorrido desde a última vez que nos viu. Dirige-se-nos alternando entre pronomes pessoais: – ‘Viste a polícia aí? Olhe, fui eu que os chamei. Estava aí um carro, de certeza, roubado!’. ‘Vi, sim’ – respondo. - ‘Fez muito bem’. – ‘Pois. Eu aqui topo tudo!’ – continua, enquanto me acompanha até à estrada que atravessarei. Avanço à mudança do sinal para os peões. Só aí nos despedimos: ‘Até logo’ – digo-lhe.
O Ervilha detém-se do lado de lá da fronteira que é a estrada. A fronteira que delimita o seu território. Uma fronteira física, bem menor do que a fronteira que divide o seu mundo de outros mundos. Rapidamente se volta à procura de mais ‘clientes’; creio que bem mais ávido de contacto humano do que de qualquer outra recompensa.
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R.,
ResponderEliminarNão há dúvida, vivemos numa enorme incongruência. Quantas mais pessoas vivem à nossa volta, maior é a nossa solidão.
(Adorei o texto, despido de apêndices e cingindo-se ao essencial)
Beijo :)
Os farrapos humanos que a sociedade vai fabricando e pondo de lado, sem préstimo...
ResponderEliminarTão triste!
AC: Muito obrigada. É certo que a solidão e a incongruência são abundantes. Por isso mesmo, julgo que os 'Ervilhas' deste mundo merecem a nossa atenção. Hoje eles, amanhã um de nós. A fonteira que separa as condições é frágil e imprevisíve. Um abraço grato :)
ResponderEliminarJustine: sem dúvida que assim é. Cabe a todos contribuir para a 'reparação'. Um abraço e uma mais feliz semana!
estamos a falar de um "destroce"?! certamente. parece-me simpático, dá aí 50 cêntimos ao destroce, por mim, daqui dos baixios, vulgo lisboa, onde se quiseres pra troca temos.vários mas curiosamente, nos últimos tempos andam mais desaparecidos. boa semana.abraço
ResponderEliminarA tua clarividência: "creio que bem mais ávido de contacto humano do que de qualquer outra recompensa". Penso que por vezes será assim. Não sempre, porque outras necessidades se impõem, em circunstâncias semelhantes.
ResponderEliminarO teu texto é magnífico. Gostei muito!
Redobro o tamanho do beijinho e os votos de uma óptima semana! :))
Boa noite R.
ResponderEliminarHá quem ache que se um arrumador de automóveis conseguir diariamente €20 no final do mês disporá de €600.
É mais do que um salário mínimo.
Eu acrescento sempre: uma pessoa que recebe o salário mínimo terá sempre uma margem de progressão; tem um quotidiano socialmente mais reconhecido; não estará exposto a tantos riscos quanto um sujeito como o Ervilha
A questão da marginalização das pessoas é sempre muito grave porque é um indício perigoso de um certo falhanço da sociedade.
O flagelo da adição seja ela qual for é grave por corresponde a um comportamento desequilibrado.
O facto do Ervilha apresentar questões e soluções será a sua réstia de agilidade intelectual. Ainda éw capaz de pensar e proteger o seu mercado de gorjetas.
Bom texto, R.
Bjs
conheci um alface que arrumava letras. e se ele tinha jeito.
ResponderEliminar... e por aí ... tantos Ervilhas
ResponderEliminarsem carros para arrumar
Olá via. É simpático, sim. E pacífico... Abraço grande!
ResponderEliminarSara, é assim mesmo: uma tentativa de equilibrar necessidades em situação tão precária. Um beijinho para ti também.
Caro JPD,
Também considero preocupantes todas as formas de marginalização. E julgo que, frequentemente, é ténue a barreira que separa a integração da marginalização. Acima de tudo, sensibiliza-me o sofrimento humano. Seja ele hetero ou auto-imposto. Um abraço grato.
Rui: Pois. Há todo o tipo de 'vegetais' ;)
Mar Arável: Concordo. Infelizmente, são cada vez mais...
R,
ResponderEliminarGostei do texto. Há vidas que não têm uma estrutura... há sempre uma fronteira, no entanto o Ervilha carece mais do contacto humano, talvez encontre a sua fronteira sem fronteiras.
Boa semana, abraço! :)
Interessante e intrigante descrição desse ser...
ResponderEliminarGostei do escrito!
Beijinhos e fica feliz.
Ceiça
ana: assim é. Julgo que o Ervilha consegue por essa via manter-se 'à tona da água' no que toca a saúde mental. Obrigada e um abraço também :)
ResponderEliminarSeiça: obrigada e votos retribuídos!
Cá para mim este post está a desfibrar correndo o risco de desfibrar completamente e sem remissão. Terapia urgente: um post irmão ou sobrinho, ou parente afastado, novinho em folha. (PS: pode até ser emigrante, ou turista ocasional, embora, claro, prefira coisa de sangue)
ResponderEliminar:)) Muito bom, via! O tempo escasseia, mas agradeço o incentivo. Há que estabelecer prioridades também no que ao blogue diz respeito! Tens toda a razão! :)
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