30 de dezembro de 2012

Receita (e votos) de Ano Novo

Porque ele se aproxima, "novinho em folha",
e faltando-me a verve para melhor o expressar, 
subscrevo e endereço-vos as palavras do poeta, 
com os votos de um magnífico Ano Novo.

"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (...)
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem (...)
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre".

(Carlos Drummond de Andrade, "Receita de Ano Novo" In "Jornal do Brasil", 1997)


Imagem daqui

2 de dezembro de 2012

O homem da mulher


Ultimamente, um anúncio televisivo apresenta vários chefs de cozinha acompanhados de algum dos seus familiares (filhos, netos, etc.). O grau de parentesco dos intervenientes é indicado numa legenda, e num dos vários anúncios pode ler-se: “Fulana de tal, mulher do chef  Beltrano…”. Esta expressão formal, vulgo “mulher de”, não tem equivalente no masculino, habitualmente correspondente às expressões “esposo” ou “marido”. De cada vez que deparo com isto, interrogo-me sobre a aparente arqueologia “machizóide” desta expressão. Com efeito, não é raro encontrar referência à “mulher do sr. director” ou ”à mulher do sr. presidente”, mas em contexto de linguagem formal não se encontram expressões como “o homem da Sra. professora” ou o “homem da sra. dra.” A excepção a esta regra encontra-se na linguagem popular. Cá pelo Norte, região pródiga em mulheres com “pêlo na benta” (metaforicamente falando, sublinhe-se), não é raro ouvi-las dizer: “o meu homem isto” ou “o homem daquela, aquilo”. Gosto deste equivalente possessivo para o lado feminino. Com efeito, se uma “mulher” pode pertencer a um homem, então um “homem” também pode pertencer a uma mulher. Sou por isso da opinião que se inclua esta expressão na linguagem formal e se leia ou se ouça, com idêntica solenidade, "o homem da sra. ministra" ou o "homem da cidadã...". Faça-se, assim, justiça linguística e possessiva. 

Imagem daqui

18 de novembro de 2012

Porque gostam os gatos dos escritores?




«No âmbito de uma exposição sobre a vida e obra de Manuel António Pina, o Museu Nacional da Imprensa preparou um inquérito (cujos excertos reproduzimos aqui) sobre a relação dos escritores com os gatos. As perguntas simples que fizemos a vários escritores foram as seguintes: Por que gostam os escritores de gatos? Ou por que gostam os gatos dos escritores?» 


(@ Jornal Notícias em dossier de homenagem a Manuel António Pina, no dia em que celebraria 69 anos de idade)

14 de novembro de 2012

Gosto do Meu País

Gosto do meu País, mas às vezes o que me apetecia era fazer greve de Portugal. 
O que me impede é o amor que lhe tenho.

(Imagem @ DN, 14/11/2012)

11 de novembro de 2012

Aos caros amigos destas bandas

Meu caro amigo me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita
Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Muita mutreta pra levar a situação/ Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça (...)
É pirueta p'ra cavar o ganha-pão/ Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro (...)
Meu caro amigo eu quis até telefonar/ Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito p'ra fazer você ficar/ A par de tudo que se passa (...)
Muita careta p'ra engolir a transação/ 
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho 

E a gente vai se amando que, também, sem um carinho (...)
Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever/ Mas o correio andou arisco
Se me permite, vou tentar lhe remeter/ Notícias frescas nesse disco (...)
 


(Chico Buarque, "Meu caro amigo" In Álbum "Meus Caros Amigos", 1976) 

PS: Um abraço lembrado a todos os amigos deste círculo, com o desejo sincero de que estejam bem.



8 de julho de 2012

Vou, mas volto.

Em vésperas de partir, deixo a sugestão de um outro destino (para mim, de sonho): a reserva biológica Huilo Huilo nos Andes Patagónicos do Chile. O pitoresco hotel, que aqui se pode ver, enquadra-se, na perfeição, neste extraordinário bosque "mágico", classificado pela UNESCO como "reserva da biosfera". 
'Bora lá? ;)
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(Imagem daqui)

1 de julho de 2012

Portugal vs Islândia: descubra as diferenças

Na Islândia, o actual presidente foi reeleito para um 5º mandato. (...) Após o colapso financeiro e bancarrota da Islândia, em Outubro de 2008, Grimsson pôs-se ao lado dos Islandeses contra a banca e os grandes interesses financeiros internacionais. Ele vetou, por duas vezes, o pagamento das dívidas contraídas pelo banco Islandês, Icesave, no estrangeiro e declarou que na Islândia, enquanto fosse Presidente, não se encerraria uma escola, um infantário ou um hospital para pagamento das aventuras e coboiadas da banca e da bolsa. -"Não temos medo dos mercados. Eles que paguem a crise. Ninguém há-de morrer de fome num país com mais ovelhas que gente e mais canas de pesca que telemóveis" – declarou, na altura, o presidente da Islândia. Quatro anos volvidos, a Islândia é hoje a economia Europeia em mais rápido crescimento. O desemprego caiu de 14 para 7%, a dívida externa foi cortada para 30% do PIB, e o pagamento dos empréstimos do FMI está adiantado 5 anos. Se o actual ritmo de recuperação prosseguir, a Islândia voltará a ser um dos 5 países mais ricos do mundo em 2020. (Helder Fernandes In Serviço noticioso da TSF, 01/07/2012).

25 de junho de 2012

Diário de uma profissão


(Fotografia de Robert Doisneau, L'information scolaire, 1956)

Professora?
- Sim? – pergunto.
- O que deve fazer um psicólogo quando uma cliente se apaixona por ele?
Respondo apelando à ética e deontologia da profissão, e antevejo que este é apenas o mote para a pergunta verdadeiramente ansiada. Eis que ela surge de imediato:
- E nós? O que podemos fazer quando não queremos apaixonar-nos por alguém?
- Bem, nesse caso já está tudo feito – respondo.
A turma explode numa gargalhada colectiva, na qual participa o próprio que deliberadamente se deixara apanhar.
- Resta decidir como resolver a situação – acrescento, a custo, por cima do riso que a todos contagia.
Entre gargalhadas e sugestões mais ou menos inusitadas, uns e outros vão aconselhando o colega… Recuperada a compostura, retomo a aula acompanhada desta frequente constatação: uma turma é muito mais do que um grupo de alunos. É um caleidoscópio de vidas e experiências que desejavelmente não podemos adivinhar.

17 de junho de 2012

Da Grécia

Com os votos de que este Domingo se cumpra o melhor para a Grécia e o melhor para a Europa, na esperança de que paulatinamente se dissipem as nuvens negras.
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Imagem daqui

26 de maio de 2012

Música para os dias que correm: "A change is gonna come"

"A Change is Gonna Come" é uma canção lendária da autoria de Sam Cooke (1963), que se tornou um ícone na reivindicação pelos direitos civis na década de 60 e inspirou muitas das composições da mesma linha. Representa também uma mensagem de esperança numa mudança vindoura. Mais do que esperança: representa uma convicção. Agora, como então, não há direitos garantidos e, menos ainda, equitativos. Agora, como então, uma mudança impõe-se. 
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I was born by the river in a little tent / And just like the river I’ve been running ever since
It's been a long, a long time coming / But I know a change gonna come, yes it will
There've been times that I thought I couldn't last for long / Now I think I'm able to carry on
It's been a long, a long time coming / But I know a change gonna come

19 de maio de 2012

Patolexia?


Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença (...). Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente? O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois  sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. (...) O Camilo ria-se. Perguntava o que era o colesterol, e o velho Alfredo dizia-lhe ser  uma coisa de adulto que o esperaria se não lesse livros e ficasse burro.
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In 'O Filho de Mil Homens', Valter Hugo Mãe, ed. Aleaguara, 2011
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Imagem: Pierre-Auguste Renoir, La liseuse, 1874-76

11 de maio de 2012

Do absurdo da vida

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Morreu Bernardo Sassetti, um músico tão virtuoso quanto promissor. Já aqui falei de um dos seus concertos a que tive o privilégio de assistir. Ao que parece, terá caído de uma falésia. Aos 41 anos. Todas as mortes são estúpidas, mas as mortes por acidente superam qualquer capacidade de compreensão. Lamento profundamente esta perda para a cultura Portuguesa. Ficamos terrivelmente depauperados.

8 de maio de 2012

'A fronteira de asfalto': uma pequena preciosidade


Da conjugação de generosidades nasceu esta pequena preciosidade. De um lado, a generosidade literária do celebrado José Luandino Vieira e, do outro, a generosidade gráfica de Alberto Péssimo. Juntas, deram forma a esta edição da Letras & Coisas, uma publicação destinada a apoiar a ASAS. O argumento é tão simples e belo quanto intemporal: a história de uma amizade impedida pelo preconceito. O asfalto delimita a fronteira entre dois mundos contrastantes, porque do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. ... E (Ricardo) lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda não havia a fronteira de asfalto (p.9).  

1 de maio de 2012

1º de Maio: muito por fazer

Nada está feito enquanto resta alguma coisa por fazer.
(Romain Rolland, Prémio Nobel da Literatura em 1915)
(Imagem daqui)

24 de abril de 2012

Por toda a gente, 25 de Abril Sempre!


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
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Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
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Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
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E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
.
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
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(Sophia de Mello Breyner Andresen, 'Esta Gente' In 'Geografia', 1967, ed. Ática)
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(Liberdade1984, Cartaz de Vieira da Silva comemorativo do 10º aniversário do 25 de Abril de 1974)

16 de abril de 2012

Ouvido (2)




O difícil faz-se já.
O impossível só demora mais um bocadinho.


(Ouvi a alguém esta citação. Desconheço-lhe a origem. Mas tenho para mim que dava uma boa definição de "utopia").





(Imagem: M. C. Escher, da colecção Simetrias. In Site Oficial)

9 de abril de 2012

Portugal futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro.

(Ruy Belo, "O Portugal futuro" In "Todos os Poemas", Ed. Assírio & Alvim, 2004)


      (Património Português: Castelo de Santa Maria da Feira, Agosto de 2011)

27 de março de 2012

Serpentes engravatadas

Desengane-se quem pensa que todos os psicopatas se comparam ao protótipo de "Jack, o estripador" ou de "Hannibal Lector": geralmente sanguinários, anti-sociais e reconhecíveis pelas maiores atrocidades. Não. Também os há de fato e gravata; a comandar grandes empresas, instituições de renome, entidades financeiras e equipas de trabalho várias. É exactamente sobre esses que versa o livro de base científica "Snakes in suits: when psychopaths go to work" (infelizmente não traduzido para português). Da autoria de dois peritos em psicopatia (Paul Babiak e Robert Hare), a obra retrata como "qualidades" de liderança, carisma superficial, convicção, flexibilidade moral e ética, capacidade de correr riscos, ambição ou manipulação podem resultar numa escolha perigosa (estimada em 10% dos casos) e invariavelmente destrutiva (para uns quantos ou para muitos). O principal problema não residirá na maioria dos requisitos mas, antes, no facto de muitos deles encaixarem "como uma luva" na personalidade anti-social (termo técnico para a vulgar designação de "psicopata"). Ainda agora comecei a leitura, mas já a aconselho vivamente.

20 de março de 2012

Da esperança

(Georges Braque, Little Bay at La Ciotat, 1907)

O pescador pensou que a natureza tinha uma inteligência impressionante, e que havia de saber sobre a sua vida, havia de entender o seu desejo e havia de lhe acudir. O Crisóstomo, ali sozinho (...), abriu a boca e falou. (...) Acontecia assim porque, aos quarenta anos, o Crisóstomo assumiu a tristeza para reclamar a esperança(...) A natureza, quieta a ser só inteligente e quieta, não disse nada, nem o Crisóstomo esperaria ouvir uma voz. A esperança era uma coisa muda e feita para ser um pouco secreta..
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(Valter Hugo-Mãe, 'O Homem que era só Metade' In 'O Filho de Mil Homens', 2011) 

12 de março de 2012

Da Barbárie (ou um "post" incómodo)

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Recentemente ouvi no telejornal que um dos programas mais vistos na China (por cerca de 100 milhões de pessoas) consiste num "reality show" onde uma jornalista entrevista condenados à pena de morte que estão prestes a ser executados. O programa não só se transformou num fenómeno de popularidade, como é incentivado pelo governo do país, com o pretexto de um desejado efeito dissuasor sobre potenciais criminosos. Ora, na China, os crimes elegíveis para pena de morte rondam os 50, e variam entre homicídio e roubo. Como é pendor de todo o "reality show", o "espectáculo" é largamente promovido e inclui imagens da família em desespero. Como se nota, o regozijo com o sofrimento alheio não é apanágio do passado (os circos romanos, a queima das "bruxas" e outros "divertimentos" que tais eram assistidos e aplaudidos por muitos). Infelizmente, a curiosidade mórbida persiste. E, como tal, a pergunta impõe-se: será a mão que aperta o gatilho o único dos homicidas?

(Imagem: Desenho de Lasar Segall, 1940-1943, do caderno visões da guerra)

28 de fevereiro de 2012

Felicitações Literárias

...
Parabéns a Mário Cláudio*, um dos meus escritores contemporâneos preferidos (ou talvez devesse dizer o meu escritor preferido), que ontem foi distinguido com o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para melhor obra de ficção narrativa, com o livro Tiago Veiga - uma biografia. Trata-se de uma honrosa distinção a somar às muitas que já recebeu (há mesmo quem defenda que se fosse uma personalidade mais mediática e extrovertida, há muito que teria maior reconhecimento internacional, inclusive da Academia Nobel...). Já aqui referi algumas das suas obras, como foi o caso de Amadeo (sobre o pintor Amadeo de Souza Cardoso), mas sou incapaz de seleccionar um livro entre todos os outros. Deixo algumas sugestões adicionais, com a ressalva de que a minha opinião é suspeita, ainda que vivamente as aconselhe! Assim, e sem ordem de preferência, aqui ficam:
Boa Noite, Senhor Soares (inspirado no pseudo-heterónimo de Fernando Pessoa);
Guilhermina (sobre a famosa violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia); e 
Ursa Maior (um verdadeiro "unputdownable", que por sorte foi o primeiro que li do autor e me tornou incondicional. Integrado numa trilogia literária, cujos títulos se inspiram em constelações, a este livro juntam-se ainda Orion e Gémeos).

*Pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa
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(Imagem daqui)

23 de fevereiro de 2012

Se tu viesses ver-me à tardinha

- Se tu viesses ver-me à tardinha - dizia Florbela Espanca, - eu havia de contar-te os anos idos - dir-te-ia eu. Havia de contar-te as descobertas, as aventuras, os tropeções e sustos; e as vezes e o tempo que contemplei o teu retrato.
Se tu viesses ver-me à tardinha, eu havia de interrogar-te sobre o destino das almas: - Sempre é verdade que existem? E para onde vão? E porquê assim, de repente? - Tantas perguntas que eu tinha p'ra te fazer... Tanta coisa p'ra te contar… Sabias que comecei a desconfiar de deus quando partiste? Logo tu, que nos fazias tanta falta. Logo a mim, que era ainda tão pequena...
Se tu viesses ver-me à tardinha, havia de te contar dos namorados que tive, porque era a ti que queria revelá-lo em primeiro lugar. Havia de contar-te o que não disse a mais ninguém e retrospectivamente ouviria os teus conselhos.
Se tu viesses ver-me à tardinha, dir-te-ia das recordações que de ti guardo: da meiguice, do cheiro do teu bolo de canela, dos passeios e brincadeiras que partilhámos, da força das tuas mãos e mais ainda do teu carácter, do sorriso que me reservavas quando a morfina já não aplacava a tua dor mas aplacava a minha...
Se tu viesses ver-me à tardinha, eu juro que guardaria segredo. De qualquer modo, ninguém acreditaria. Talvez dissessem condoídos: - “Pobrezinha… descompensou”.
Uma coisa eu te garanto: se tu viesses ver-me à tardinha, nem que fosse só por uma vez, eu havia de pousar a cabeça no teu colo, sentir de novo a textura da tua saia e a aspereza das tuas mãos no meu cabelo, e pela primeira vez em muito tempo, poderia consentir-me fechar os olhos e voltar a acreditar, sem reservas, que o mundo é um lugar seguro.

17 de fevereiro de 2012

Da amnésia europeia

«Na noite em que Atenas voltou a arder, Manolis Glezos foi barrado pela polícia quando pretendia entrar no parlamento. (...) O octogenário de bigode branco e olhos azuis disse com a dignidade de um velho resistente aquilo que Venizelos, o ministro das Finanças, entredisse mais tarde, na outra margem do desespero: "Há vários países que já não nos querem". Esta constatação de que a Europa das contas certas se dá ao luxo de descartar uma das suas partes como se apagasse uma parcela errada, esta ideia de que o controlo da dívida justifica o abandono de valores estruturantes, fundadores, da própria ideia de Europa, é já explicitada com o despudor e a desfaçatez dos cobradores de fraque. Karolos Papoulias, o presidente grego, (...) veio lembrar-nos que os europeus lutaram juntos no passado. (...) Ora desse passado (...) há, ainda, mesmo que aparentemente residuais, contas por saldar. Foi o que Manolis Glezos gritou à porta do parlamento na noite em que Atenas voltou a arder. Ele lembrou que Hitler obrigara o Tesouro grego a emprestar dinheiro ao III Reich. 100 milhões de euros, às contas de hoje. Berlim pagou dívidas semelhantes a outros países, depois da guerra. Mas nunca saldou a dívida que tem perante a Grécia, agora "descartável". Quem é o (...) o velho resistente Manolis Glezos (?). Quem é este homem? É aquele que num certo 30 de Maio de 1941, retirou a bandeira nazi da Acrópole. De Gaulle chamou-lhe "o primeiro partisan da Europa". (...) Escorados na memória e nos valores que fundaram a Europa, Manolis Glezos e Mikis Teodorakis, ambos antigos resistentes e antigos deputados, estiveram à porta do parlamento, na noite em que Atenas voltou a arder. Diante da força policial que os barrou, eles repetiram Zorba, o Grego, a cena em que Zorba abre os braços e grita para o companheiro: - "Alguma vez viste um desastre mais esplêndido?". Zorba, o que dança na praia de Stravos, levado pela música de Teodorakis. Chamavam-lhe "Epidemia". Porque espalhava o caos.».
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(Sinais, "Manolis Glezos", crónica de Fernando Alves na TSF, em 16/02/2012)
Imagem: Memosine (deusa da memória), pintura de Rossetti, 1875-76.

10 de fevereiro de 2012

Improvisemos...

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O capricho de um segundo
roubou-me o meu futuro
provisoriamente inteiro.
Hei-de reconstruí-lo ainda mais belo
como o imaginava desde o princípio.
Hei-de reconstruí-lo sobre esta terra firme
que se chama a minha vontade.
Hei-de elevá-lo sobre os altos pilares
que se chamam o meu ideal.
Hei-de dotá-lo de um subterrâneo secreto
que se chama a minha alma. (...).
(Edith Södergran, poema declamado aqui)

(Kandinsky, Improvistion 28, 1912)

(Porque nos tempos que correm, improvisar é preciso. E porque a arte expressionista, como a pintura ou a poesia que aqui se ilustram, pode ser extremamente inspiradora.) 

3 de fevereiro de 2012

São pessoas, senhores. São pessoas.

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Por estes dias chega a Portugal a vaga de frio que  tem assolado a Europa. A comunicação social anuncia que autarquias e instituições várias reforçam o apoio "aos sem-abrigo". Pessoalmente, abomino esta expressão. Categorias, como esta, remetem aquele que é humano para um plano abstracto, "coisificam-no", tornando-o invisível para muitos e aliviando a consciência de outros tantos. Não são "os sem-abrigo". São pessoas sem abrigo. São a Maria, o António, o José, o João e tantos outros, privados de condições condignas de subsistência. Se sentem frio, fome, dor, ou a simples necessidade de um banho, não dispõem de meios imediatos para os enfrentar; mas a matéria de que são feitos é idêntica à nossa. Não há os "sem abrigo" e os "outros". Há, tão-somente, pessoas. 

31 de janeiro de 2012

Lexicofilia (5) ... ou epíteto para um país

Choné: o que é maluco ou amalucado
(In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
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A propósito dos últimos tempos, tenho para mim que Portugal deixou de ser a "ovelha negra" da Europa para passar a ser, pelo menos internamente, a ovelha... choné!

E para "desanuviar", AQUI ficam 40 segundos de pura "chonézice".

24 de janeiro de 2012

Estrelas de Matusalém*

Tenho um manifesto fascínio por estrelas-do-mar. Estes curiosos seres (animais extremamente lentos e diversificados) existem há pelo menos 500 milhões de anos, e encontram-se em ambientes tão díspares quanto os Pólos ou o Equador. Se amputados, apresentam uma extraordinária capacidade de regeneração. De tal modo, que a estrela atingida pode reproduzir integralmente um braço omisso e, em algumas espécies, o braço suprimido origina uma estrela nova e completa(!). Além disso, (ambição desmedida de tantos), as estrelas-do mar não envelhecem. A doença ou a predação são as únicas ameaças à sua potencial "eternidade". Habitam no fundo dos mares, mas também nos sonhos e imaginário de muitos. Uma delas terá confidenciado a um dos nossos: - Sou a Estrela-do-Mar/ Só a ele obedeço, só ele me conhece/ Só ele sabe quem sou no princípio e no fim. E ainda que já tenham passado mil anos sobre este encontro, (...) mil anos são pouco, ou nada, p'ra Estrela-do-Mar.**
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(Estrelas-do-Mar: a fotografia possível, sobre uma vitrine, no Museu de História Natural de Oxford; 2008)
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[** Citação da canção de Jorge Palma, Estrela do Mar, no álbum , 1991]
*Personagem Bíblico que teria vivido cerca de 1000 anos.

19 de janeiro de 2012

O valor de 1 Euro



A Associação Movimento 1 Euro é uma associação de solidariedade social, apolítica e sem fins lucrativos (...), que representa (...) um movimento cívico (...) que utiliza apenas o apoio financeiro dos associados (1Euro por mês, por cada associado) para apoiar causas escolhidas e votadas pelos próprios
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(A informação sobre a Associação e o Movimento estão disponíveis no respectivo site, que pretende sensibilizar para a diferença que (...) 1 Euro faz na vida de alguém. A mim, sensibilizou-me. E, também por isso, aqui fica a partilha).
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Nota Bem: os euros doados não são entregues às associações beneficiárias; são primeiro convertidos nos bens materiais destinados aos candidatos.

maleitas da "blogolândia"...

(Imagem daqui)
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Recebi a indicação de que alguns visitantes se vêem impossibilitados de deixar aqui comentários. Uma vez que desconheço a origem do problema, resta-me agradecer a intenção e fazer figas para que a "maleita" desapareça tão súbita e misteriosamente quanto surgiu!

12 de janeiro de 2012

Interpelação para dias frenéticos

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E ao fim do meu dia
a matéria de que se faz a minha vida
de novo abandonada
de novo de novo abandonada
pergunta-me silenciosa
se ao apagar a luz
a vida terá princípio.
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(Pedro Tamen, Poema 23 in O livro do sapateiro, 2010, Ed. Dom Quixote)
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(Pintura de Edward Hopper, Night Windows, 1928)