(Maria Helena Vieira da Silva, Entreprise Impossible, 1967)
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade./ Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia./ O último trovador morreu em 1914./ Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples./ Se quer fumar um charuto aperte um botão./ Paletós abotoam-se por eletricidade./ Amor se faz pelo sem-fio./ Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal/ que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura./ Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoram/ e matam-se como percevejos./ Os percevejos heróicos renascem./ Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado./ E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)
(Carlos Drummond de Andrade, O Sobrevivente, in 'Alguma Poesia', 1930)