25 de abril de 2011

As Portas que Abril Abriu

(...)
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
(...)
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
(...)
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse

e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.

(José Carlos Ary dos Santos, As Portas que Abril Abriu, 1975)
Imagem: Cartaz de Maria Helena Vieira da Silva
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21 de abril de 2011

Mãos à Obra! (1)

Começo por citar um provérbio Africano, generosamente partilhado pela A.A. no rodapé dos seus emails. Reza assim: 'Muita gente pequena, em muitos lugares pequenos, a fazer pequenas coisas, pode mudar o mundo'. É pois chegada a hora de reunir os pequenos esforços individuais num todo colectivo, que contribua para combater e superar as dificuldades presentes e as que ainda se avizinham. Ficarão por aqui algumas ideias e todas as vossas serão igualmente bem-vindas.

Para começar, uma ideia simples, óbvia, mas longe de concretizada na medida justa: compremos produtos made in Portugal. É sabido que este simples gesto, somado a muitos outros idênticos, é condição fundamental para uma mais saudável economia, promove o emprego e diminui as importações. Mais do que sabê-lo, importa praticá-lo. Há tempos enviaram-me um email, provavelmente bem conhecido, que ilustra o oposto deste espírito. Pode parecer exagerado, mas não andará muito distante da realidade. Aqui fica também, com um agradecimento ao P. Silva pela partilha.

Depois de um banho com sabonete (Made in France) e enquanto o café (importado da Colômbia) estava a fazer na máquina (Made in Chech Republic), barbeou-se com a máquina eléctrica (Made in China). Vestiu uma camisa (Made in Sri Lanka), jeans de marca (Made in Singapure) e um relógio de bolso (Made in Swiss). Depois de preparar as torradas de trigo (produced in USA) na sua torradeira (Made in Germany) e enquanto tomava o café numa chávena (Made in Spain), pegou na máquina de calcular (Made in Korea) para ver quanto é que poderia gastar nesse dia e consultou a Internet no seu computador (Made in Thailand) para ver as previsões meteorológicas. Depois de ouvir as notícias pela rádio (Made in Índia), ainda bebeu um sumo de laranja (produced in Israel), entrou no carro (Made in Sweden) e continuou à procura de emprego. Ao fim de mais um dia frustrante, com muitos contactos feitos através do seu telemóvel (Made in Finland) e, após comer uma pizza (Made in Italy), o António decidiu relaxar por uns instantes. Calçou as suas sandálias (Made in Brasil), sentou-se num sofá (Made in Denmark), serviu-se de um copo de whisky (produced in Scotland), ligou a TV (Made in Indonésia) e pôs-se a pensar porque é que não conseguia encontrar um emprego em Portugal...
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19 de abril de 2011

Contagem decrescente

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Numa altura em que a desgraça domina os ‘tablóides’, em que impera o alarmismo e se alvitra  repetidamente sobre a inevitabilidade de fatalidades futuras, domina-me a ideia de contagem decrescente (outros chamar-lhe-iam 'optimismo delirante', calculo...). Acredito que já a iniciámos. Contagem decrescente em direcção à superação que há-de vir. Não importa se partimos de cinco milhões, novecentos e noventa e nove mil, seiscentos e setenta e dois. O importante é que se lhe seguem cinco milhões, novecentos e noventa e nove mil, seiscentos e setenta e um.

(Imagem daqui)

Ressalva: Este post é dedicado à via, que positivamente me invectivou a atender ao blogue.
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10 de abril de 2011

Ervilha

Desconheço o nome que consta do BI (ou do cartão de cidadão). Todos o conhecem por ‘Ervilha’. E é também assim que se apresenta.

Pertence à classe dos designados ‘arrumadores de automóveis’.

A figura é frágil, a pele macilenta, o cabelo esparso, comprido e desgrenhado. Aparenta estar na casa dos 50, mas é sabido que nestes casos a aspereza da vida impõe um retrato raramente fiável. Os olhos pequenos, escuros e fundos, sempre inquietos, alternam incessantemente entre o interlocutor e o horizonte, entre o pestanejar ritmado e o arquear das sobrancelhas. O corpo é um magro cabide, que sustenta roupas sempre largas e de tamanho desproporcionado.

Paradoxalmente, convive lado a lado com a esquadra da polícia. ‘Sem espinha’ – já mo disse. Todos julgamos saber o que o move. Saberemos? Persegue-nos desde a saída do automóvel até ao limite do estacionamento. Não olha para a moeda que arbitrariamente lhe colocamos na mão e aborda-nos com inesgotável assunto. Não importa o dia ou o tempo decorrido desde a última vez que nos viu. Dirige-se-nos alternando entre pronomes pessoais: – ‘Viste a polícia aí? Olhe, fui eu que os chamei. Estava aí um carro, de certeza, roubado!’. ‘Vi, sim’ – respondo. - ‘Fez muito bem’. – ‘Pois. Eu aqui topo tudo!’ – continua, enquanto me acompanha até à estrada que atravessarei. Avanço à mudança do sinal para os peões. Só aí nos despedimos: ‘Até logo’ – digo-lhe.

O Ervilha detém-se do lado de lá da fronteira que é a estrada. A fronteira que delimita o seu território. Uma fronteira física, bem menor do que a fronteira que divide o seu mundo de outros mundos. Rapidamente se volta à procura de mais ‘clientes’; creio que bem mais ávido de contacto humano do que de qualquer outra recompensa.
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1 de abril de 2011

Neruda sem pAR

Andando en un camino / encontré al aire,
lo saludé y le dije / con respeto:
“Me alegro / de que por una vez
dejes tu transparencia, / así hablaremos”.

Él incansable, / bailó, movió las hojas,
sacudió con su risa / el polvo de mis suelas,
y levantando toda / su azul arboladura,
su esqueleto de vidrio, / sus párpados de brisa,
inmóvil como un mástil / se mantuvo escuchándome.

Yo le besé su capa / de rey del cielo,
me envolví en su bandera / de seda celestial
y le dije:
monarca o camarada, / hilo, corola o ave,
no sé quien eres, pero / una cosa te pido,
no te vendas.

El agua se vendió / y de las cañerías
en el desierto / he visto
terminarse las gotas / y el mundo pobre, el pueblo
caminar con su sed / tambaleando en la arena.
Vi la luz de la noche / racionada,
la gran luz en la casa / de los ricos.
Todo es aurora en los / nuevos jardines suspendidos,
todo es oscuridad / en la terrible / sombra del callejón.
(…)
No, aire,
no te vendas,
que no te canalicen,
que no te entuben,
que no te encajen
ni te compriman,
que no te hagan tabletas,
que no te metan en una botella,
cuidado!

llámame
cuando me necesites,
yo soy el poeta hijo / de pobres, padre, tío,
primo, hermano carnal / y concuñado
de los pobres, de todos, / de mi patria y de las otras,
(…)
y por eso / yo quiero que respiren,
tú eres lo único que tienen,

por eso eres / transparente,
para que vean / lo que vendrá mañana,
por eso existes, / aire,
déjate respirar, / no te encadenes,
no te fíes de nadie / que venga en automóvil
a examinarte,
déjalos,
ríete de ellos,
vuélales el sombrero,
no aceptes / sus proposiciones,

vamos juntos
bailando por el mundo,
(…)
nos queda mucho
que bailar y cantar,

vamos
a lo largo del mar,
a lo alto de los montes,
vamos
donde esté floreciendo / la nueva primavera
y en un golpe de viento / y canto
repartamos las flores, / el aroma, los frutos,
el aire
de mañana.

(Pablo Neruda, Oda al Aire in 'Odas Elementales', 1954, Ed. Losada)
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