29 de dezembro de 2009

A clareza de Clarice

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Já que se há-de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
(Clarice Lispector)


(Roland Barthes, 1971)

27 de dezembro de 2009

Prudente Hedonismo

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(Picasso, La Joie de Vivre, 1946)..

"É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz... Com efeito, identificamo-lo como o primeiro bem e essencial ao ser humano, e por razão dele pomos em prática toda a escolha e toda a recusa... Ainda que o prazer seja o nosso bem primeiro e natural, não é por isso que escolhemos qualquer prazer... Convém avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos... A prudência é o princípio e o bem supremo... É ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade."
(Epicuro, Carta sobre a Felicidade, séc. IV A.C.)

23 de dezembro de 2009

Natal, e não Dezembro ...

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(Imagem de Paulo Lopes, 2008, publicada aqui)
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Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio. .
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.
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(David Mourão-Ferreira, "Natal e não Dezembro", 1962, in Cancioneiro de Natal)

21 de dezembro de 2009

Reverenciando a arte "popular"

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Não é só na grande terra
que os poetas cantam bem:
os rouxinóis são da serra
e cantam como ninguém
(...)
Ser artista é ser alguém!
Que bonito é ser artista...
Ver as coisas mais além
do que alcança a nossa vista!

António Aleixo in Este Livro Que Vos Deixo (1969)



Nerival Rodriges (pintor Naif ), Colheita do café (2009)

20 de dezembro de 2009

Assim falou... Albert Camus

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Au milieu de l'hiver, j'ai découvert en moi un invincible été.
(No auge do inverno, descobri em mim um invencível verão)
...............
..............................Fotografia de: Marisa Isabel Barbosa

18 de dezembro de 2009

Previdente...

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Uma coisa é colher
Outra é plantar
Colheita é receber
Plantio é dar
Não faça com que a pressa de colher,
estrague o seu momento de plantar..
.
(Geir Campos)




(Diego Rivera, Cargador de Flores, 1935)

14 de dezembro de 2009

Incontornável (#2) ou... Incontornável "Gabo"

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Muitos anos depois, em frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o seu pai o levou a conhecer o gelo.
(Gabriel García Marquez, Cem anos de Solidão, 1967 - ed. original)

(Quem, como eu, já o leu, poderá sentir nostalgia por esta inigualável experiência. Para quem ainda não teve essa oportunidade, aqui fica uma sugestão que consta, invariavelemte, das listas dos "imperdíveis").
 
 





(Tamas Galambo, pormenor de Summer, 1981
      - capa da edição da Penguin Books)

13 de dezembro de 2009

Assim falou... J. L. Borges

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Chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve.
(Jorge Luis Borges)*

Auguste Renoir, La Lecture, 1889

*Agradeço a J. a partilha desta citação

10 de dezembro de 2009

Reflexos...

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Anarda, que se apura
Como espelho gentil da fermosura,
Num espelho se via,
Dando dobrada luz ao claro dia;
De sorte que com próvido conselho
Retrata-se um espelho noutro espelho

(Manuel Botelho de Oliveira, Anarda vendo-se a um espelho, séc. XVII)





(Pablo Picasso, Mulher ao Espelho, 1932)

8 de dezembro de 2009

Sensata Acromatopsia

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio. 

(António Gedeão, "Lágrima de Preta" in Máquina de Fogo, 1961)
(Imagem: Milan Mrkusich, Achromatic Grey, 1977) ..

7 de dezembro de 2009

7 de Dezembro de 1937


Se vivesse, Ary dos Santos comemoria hoje 72 anos. Pródigo letrista e poeta, entre outros, a partida precoce não o impediu de deixar obra vasta e marcante. Genial na orquestração das palavras, na erupção de sentimentos ou na expressão de estados de alma, Ary é um vulto incontornável do património literário português. E que outras palavras, senão as suas, seriam melhores para o homenagear? Aqui fica, pois, uma homenagem ao Poema e ao Poeta.




                                                    
(No teu poema)
No teu poema
existe um verso em branco e sem medida,  
um corpo que respira, um céu aberto,                                                             
janela debruçada para a vida.                                                                     
(…) 
No teu poema existe a dor calada lá no fundo,
o passo da coragem em casa escura
e, aberta, uma varanda para o mundo.
(…)
Existe a noite,
o riso e a voz refeita à luz do dia,
a festa da Senhora da Agonia
e o cansaço
do corpo que adormece em cama fria.
(…)                                                                                                                    
Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai                                                           
ou que resiste,                                                                                                  
que vence ou adormece antes da morte.                                                                     
(…)                                                                                                                      
No teu poema
existe a esperança acesa atrás do muro,                                                             
existe tudo o mais que ainda escapa                                                                      
e um verso em branco à espera de futuro.                                         
                                                                                                                    

6 de dezembro de 2009

Enigma

Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?
(Alexandre Herculano In "Eurico, O Presbítero")


(Gustav Klimt, The tree of life, 1909)

4 de dezembro de 2009

O que diz... Alçada Baptista

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A luz do dia começava a distinguir o contorno dos montes (...) O belo disco de luz alaranjada ia-se erguendo e nós ficámos a olhar para o sol e para os raios que ele ia pondo na encosta da serra. Ficámos quietos e silenciosos como numa missa e aquele ritual diário , mas que a gente raras vezes tinha ocasião de ver, transmitia-nos uma grande serenidade e uma imensa emoção. (...)
Ela disse:
- O mundo é tão bonito!
Eu comentei:
- O que faz isto bonito está dentro de nós. (...)
- Talvez fosse possível ensinar as pessoas a ver nascer o sol...
Eu perguntei:
- E a ti, quem te ensinou?
- Tudo me ensinou: o meu pai, a minha mãe, o mundo em que eu nasci... Tudo mais ou menos me preparou para coisas destas. Viver é capaz de ser uma educação de sentimentos.

(...)

Temos responsabilidade para com aqueles que nos estão próximos e a que temos para com aqueles que nos estão longe deve ser proporcional à capacidade de ajuda que lhe podemos dar. Podemos matar a fome a quem passa fome ao nosso lado, mas não sei o que poderemos fazer pelo Chile ou pelo Afeganistão. Proceder de outro modo é alimentar uma forma de ficção que ultrapassa e salvaguarda o nosso egoísmo.

(...)

O demónio terá que ser outro porque nós nos viemos transformando. Deixámos de ser unos e somos múltiplos. Por isso o demoníaco é hoje subtil, tortuoso, enigmático, enganador. E cá vai a frase do Baudelaire que é obrigatória sempre que se fala no diabo: "La plus belle ruse du Diable est de nous persuader qu'il n'existe pas".

(António Alçada Baptista In "Catarina ou o Sabor da Maçã")

1 de dezembro de 2009

1 de Dezembro de 1934



1 de Dezembro de 1934 foi a data escolhida por Fernando Pessoa
para a publicação da primeira edição de Mensagem.
"1" para indicar a data, e
"1" para o número de obras poéticas publicadas em vida pelo autor.
"1" para aludir ao derradeiro ano que viveu após esta publicação, e
"1" para classificar o lugar que ocupa ao lado de outros poetas de génio.
"1" para o mérito maior que o presente lhe reconhece, e
"1" para a mesquinhez a que o passado o votou.
"1" terá sido uma data ocasionalmente escolhida? Ou
"1" terá sido uma Mensagem "encoberta" pelo autor?
Seja como for, "1" é, neste caso, um algarismo polissémico.