
* Quando no mesmo dia somos confrontados com a morte de duas pessoas conhecidas, mas não relacionadas entre si, assola-nos, de forma súbita e pungente, toda uma erupção de interrogações. Como por exemplo: qual é a probabilidade de uma tal coincidência ocorrer? Porque razão estas notícias nos encontram sempre desprevenidos, mesmo na iminência de sucederem? E se acontecem diariamente a tantos anónimos, porque nos parecem tão aberrantes quando tocam os que nos são próximos? (…) E, para além de muitas outras, ecoa persistentemente a ideia da incontrolabilidade do que é imponderável. Neste particular, qualquer pessoa é elegível, tudo depende de uma combinação de possibilidades aparentemente infinita e parcialmente aleatória. Senão vejamos: ele era idoso, ela era jovem; ele viveu para ver os netos, ela não presenciará o crescimento da filha; ele estava internado há duas semanas, ela lutava há anos com internamentos sucessivos; ele não teve muito sucesso, ela foi bem sucedida na curta carreira profissional; etc., etc., etc. Como se nota, não há propriamente um padrão, mas não sei se haverá unicamente acaso. Aliás, costumo dizer que o acaso nunca é uma variável desprezível, mas se assim fosse, a própria noção de acaso ficaria abalada… E no meio deste turbilhão de ideias lembrei-me de uma história que me contaram, tomada por lenda da tradição oral oriental, e que reza mais ou menos assim:
Num tempo longínquo, um abastado Senhor Árabe enviou um dos seus melhores serventes ao mercado de Bagdad. Pouco tempo depois de haver partido, o jovem regressa esbaforido e pálido, suplicando ao seu amo que lhe conceda os melhores cavalos que possui, a fim de escapar a toda a pressa para a distante Samarcanda. Surpreendido, o amo indaga a razão de tal pedido. Entre soluços, o servente explica-lhe que ao chegar ao mercado, uma mulher esguia, de capuz na cabeça e longas vestes negras, o havia fitado ameaçadoramente. Nesse momento, o jovem percebeu, aterrorizado, que se tratava da Morte. O seu amo, comovido com o acontecimento, concede os cavalos pedidos e o jovem põe-se imediatamente em fuga. Ainda mal refeito do sobressalto, o amo resolve ir ao mercado, ao encontro de dita figura. Ao vê-la, perguntou-lhe: -“Diz-me, Morte, porque fitaste ameaçadoramente o meu servente? Acaso não sabes que ele é jovem e bondoso?”, ao que a Morte terá respondido: -”O meu olhar não foi de ameaça, mas sim de surpresa, porque esta noite tenho marcado, com ele, um encontro em Samarcanda”.
*(Imagem: 'The Wheel of Fortune', Sir Edward Burne Jones, 1863, Musée d'Orsay)