10 de abril de 2011

Ervilha

Desconheço o nome que consta do BI (ou do cartão de cidadão). Todos o conhecem por ‘Ervilha’. E é também assim que se apresenta.

Pertence à classe dos designados ‘arrumadores de automóveis’.

A figura é frágil, a pele macilenta, o cabelo esparso, comprido e desgrenhado. Aparenta estar na casa dos 50, mas é sabido que nestes casos a aspereza da vida impõe um retrato raramente fiável. Os olhos pequenos, escuros e fundos, sempre inquietos, alternam incessantemente entre o interlocutor e o horizonte, entre o pestanejar ritmado e o arquear das sobrancelhas. O corpo é um magro cabide, que sustenta roupas sempre largas e de tamanho desproporcionado.

Paradoxalmente, convive lado a lado com a esquadra da polícia. ‘Sem espinha’ – já mo disse. Todos julgamos saber o que o move. Saberemos? Persegue-nos desde a saída do automóvel até ao limite do estacionamento. Não olha para a moeda que arbitrariamente lhe colocamos na mão e aborda-nos com inesgotável assunto. Não importa o dia ou o tempo decorrido desde a última vez que nos viu. Dirige-se-nos alternando entre pronomes pessoais: – ‘Viste a polícia aí? Olhe, fui eu que os chamei. Estava aí um carro, de certeza, roubado!’. ‘Vi, sim’ – respondo. - ‘Fez muito bem’. – ‘Pois. Eu aqui topo tudo!’ – continua, enquanto me acompanha até à estrada que atravessarei. Avanço à mudança do sinal para os peões. Só aí nos despedimos: ‘Até logo’ – digo-lhe.

O Ervilha detém-se do lado de lá da fronteira que é a estrada. A fronteira que delimita o seu território. Uma fronteira física, bem menor do que a fronteira que divide o seu mundo de outros mundos. Rapidamente se volta à procura de mais ‘clientes’; creio que bem mais ávido de contacto humano do que de qualquer outra recompensa.
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14 comentários:

  1. R.,
    Não há dúvida, vivemos numa enorme incongruência. Quantas mais pessoas vivem à nossa volta, maior é a nossa solidão.
    (Adorei o texto, despido de apêndices e cingindo-se ao essencial)

    Beijo :)

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  2. Os farrapos humanos que a sociedade vai fabricando e pondo de lado, sem préstimo...
    Tão triste!

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  3. AC: Muito obrigada. É certo que a solidão e a incongruência são abundantes. Por isso mesmo, julgo que os 'Ervilhas' deste mundo merecem a nossa atenção. Hoje eles, amanhã um de nós. A fonteira que separa as condições é frágil e imprevisíve. Um abraço grato :)

    Justine: sem dúvida que assim é. Cabe a todos contribuir para a 'reparação'. Um abraço e uma mais feliz semana!

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  4. estamos a falar de um "destroce"?! certamente. parece-me simpático, dá aí 50 cêntimos ao destroce, por mim, daqui dos baixios, vulgo lisboa, onde se quiseres pra troca temos.vários mas curiosamente, nos últimos tempos andam mais desaparecidos. boa semana.abraço

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  5. A tua clarividência: "creio que bem mais ávido de contacto humano do que de qualquer outra recompensa". Penso que por vezes será assim. Não sempre, porque outras necessidades se impõem, em circunstâncias semelhantes.
    O teu texto é magnífico. Gostei muito!
    Redobro o tamanho do beijinho e os votos de uma óptima semana! :))

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  6. Boa noite R.

    Há quem ache que se um arrumador de automóveis conseguir diariamente €20 no final do mês disporá de €600.
    É mais do que um salário mínimo.

    Eu acrescento sempre: uma pessoa que recebe o salário mínimo terá sempre uma margem de progressão; tem um quotidiano socialmente mais reconhecido; não estará exposto a tantos riscos quanto um sujeito como o Ervilha

    A questão da marginalização das pessoas é sempre muito grave porque é um indício perigoso de um certo falhanço da sociedade.

    O flagelo da adição seja ela qual for é grave por corresponde a um comportamento desequilibrado.

    O facto do Ervilha apresentar questões e soluções será a sua réstia de agilidade intelectual. Ainda éw capaz de pensar e proteger o seu mercado de gorjetas.

    Bom texto, R.
    Bjs

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  7. conheci um alface que arrumava letras. e se ele tinha jeito.

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  8. ... e por aí ... tantos Ervilhas

    sem carros para arrumar

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  9. Olá via. É simpático, sim. E pacífico... Abraço grande!

    Sara, é assim mesmo: uma tentativa de equilibrar necessidades em situação tão precária. Um beijinho para ti também.

    Caro JPD,
    Também considero preocupantes todas as formas de marginalização. E julgo que, frequentemente, é ténue a barreira que separa a integração da marginalização. Acima de tudo, sensibiliza-me o sofrimento humano. Seja ele hetero ou auto-imposto. Um abraço grato.

    Rui: Pois. Há todo o tipo de 'vegetais' ;)

    Mar Arável: Concordo. Infelizmente, são cada vez mais...

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  10. R,
    Gostei do texto. Há vidas que não têm uma estrutura... há sempre uma fronteira, no entanto o Ervilha carece mais do contacto humano, talvez encontre a sua fronteira sem fronteiras.
    Boa semana, abraço! :)

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  11. Interessante e intrigante descrição desse ser...
    Gostei do escrito!
    Beijinhos e fica feliz.
    Ceiça

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  12. ana: assim é. Julgo que o Ervilha consegue por essa via manter-se 'à tona da água' no que toca a saúde mental. Obrigada e um abraço também :)

    Seiça: obrigada e votos retribuídos!

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  13. Cá para mim este post está a desfibrar correndo o risco de desfibrar completamente e sem remissão. Terapia urgente: um post irmão ou sobrinho, ou parente afastado, novinho em folha. (PS: pode até ser emigrante, ou turista ocasional, embora, claro, prefira coisa de sangue)

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  14. :)) Muito bom, via! O tempo escasseia, mas agradeço o incentivo. Há que estabelecer prioridades também no que ao blogue diz respeito! Tens toda a razão! :)

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