23 de maio de 2010

Da ternura ou... intemporal José Mauro de Vasconcelos

— Mas que lindo pezinho de Laranja Lima! (...)
— Mas eu queria um pé de árvore grandão. (...)
Estava me sentindo o maior desgraçado da vida. (...) Sempre eu tinha que ser o último. Quando crescesse iam ver só. Ia comprar uma selva amazónica e todas as árvores que tocavam no céu, seriam minhas. (...) Emburrei. Sentei no chão e encostei a minha zanga no pé de Laranja Lima. Glória se afastou sorrindo. (...)
— Eu acho que sua irmã tem toda a razão. (...) Eu levantei assustado e olhei a arvorezinha. Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala.
— Mas você fala mesmo?
— Não está me ouvindo? - E deu uma risada baixinha.
Quase saí aos berros pelo quintal. Mas a curiosidade me prendia ali.
— Por onde você fala?
— Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater. Fiquei meio indeciso, mas vendo o seu tamanho, perdi o medo. Encostei o ouvido e uma coisa longe fazia tique... tique...
— Viu? (...) Monte no meu galho.
Obedeci. (...) Desci adorando o meu pé de Laranja Lima. (...) Glória chegou mesmo na hora em que eu o abraçava.
— Adeus, amigo. Você é a coisa mais linda do mundo!
— Não falei a você?
— Falou, sim. Agora se vocês me dessem a mangueira e o pé de tamarindo em troca da minha árvore, eu não queria.
Ela passou a mão nos meus cabelos, ternamente.
— Cabecinha, cabecinha!...
Saímos de mãos dadas.
— Godóia, você não acha que sua mangueira é meio burrona?
— Ainda não deu para saber, mas parece um pouco.
— E o pé de tamarindo de Totoca?
— É meio sem jeitão, por quê?
— Não sei se posso contar.

(José Mauro de Vasconcelos,  O Meu Pé de Laranja Lima, 1968)
Imagem de Catalina Roa, 2009

10 comentários:

  1. É mesmo intemporal e ternurento. Li há taaaaanto tempo e a recordação que agora me trazes desenha-me um grande sorriso no rosto. Do escritor também gostei muito do "Rosinha, Minha Canoa", oferecido por uma grande amiga. Neste, elas também falam e sentem "comá gentchi" :)
    Bom início de semana! (será que é nesta que faremos um parêntesis hedonista, como aquele ali do lado? :))

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  2. Também gosto muito de ambos, Sara. E de rever coisas bonitas há muito guardadas. Ora aí está um parêntesis hedonista que vale a pena :). Oxalá concretizemos este daqui do lado em breve :). Beijinho e boa semana para ti também!

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  3. li há muito tempo, este tom confidencial e o jargão brasileiro, bem lembrado. boa semana.

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  4. Obrigada, Via. Para mim, é sempre uma lembrança enternecedora, esta de dois cúmplices que falam de tudo... excepto do tempo ;) Votos de uma excelente semana para ti também!

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  5. Fez parte da herança literária do meu pai, passei-a à minha filha aos 11 anos, e ela adorou. Agora espero que a passe aos filhos dela. É o meu contributo para perpetuar a ternura.
    ~CC~

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  6. não sabe se pode contar...
    conta que eu não conto a ninguem, tirando 2 ou 3 amigos a quem vou pedir segredo...
    jajaja

    sobe ao céu...

    abrazo serrano

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  7. Eis um texto carregado de mensagens benignas e aliciantes.

    Belíssima escolha.

    Bjs

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  8. CCF: e é um belíssimo legado. Parabéns por procurar perpetuar um sentimento tão nobre.

    mixtu: de facto, há segredos que vale a pena partilhar :)

    JPD: Obrigada. É uma escolha com efeito semelhante ao do Guizo. Parece-me que obedecem ao mesmo "princípio activo" :)

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  9. Eu até tou envergonhada...nunca li...mas tenho uma atenuante...não vivi a minha infância em POrtugal, logo as minhas referências infantis são outras...mas vou ter que remediar a isso...quem sabe um dia com meus próprios filhos..:)

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  10. Qualquer altura é boa, Isabel :) Vais ver que não desilude!

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