31 de maio de 2010

Percursos paralelos...

(Fernando Pessoa, Heterónimos, Lívio de Morais, 1997)
"No aspecto profissional, e não só, podemos encontrar um certo paralelismo entre Fernando Pessoa e um outro monstro sagrado da literatura, seu contemporâneo, Franz Kafka (1883-1924). Ambos tiveram de realizar trabalho rotineiro para sobreviver. Ambos sofreram o impacto de mais de uma cultura (a inglesa e a portuguesa, no caso de Fernando Pessoa, e a judia e a alemã, no caso de Franz Kafka). Ambos foram angustiados crónicos. Ambos sucumbiram à acção de causas tóxicas (o alcoolismo em Pessoa e a tuberculose em Kafka). Ambos se tornaram célebres só postumamente."
(A. Fernandes da Fonseca in "A Psicologia da Criatividade", 1998)

28 de maio de 2010

Parabéns duplicados ou... "n iplicados"

Imagem daqui

Recentemente Siza Vieira integrou o selectíssimo grupo dos membros honorários da Academia Americana de Artes e Letras. Mais um reconhecimento internacional de alto nível que homenageia uma obra ímpar, e que é digno de nota. Por cá, e por estes dias, o arquitecto foi afastado do projecto de requalificação do Forte de Peniche por discordar do acrescento de dois pisos ao edifício original. Também por isso, aqui ficam as felicitações e o reconhecimento reiterado de uma cidadã que lamenta a amnésia histórica que grassa em Terras Lusas.

26 de maio de 2010

E que os teus olhos os uses como quem usa um farol...



Quando/ tu me vires no futebol/
estarei no campo/ cabeça ao sol
a avançar pé ante pé/ para uma bola que está/ à espera dum pontapé
à espera dum penalty/ que eu vou transformar para ti
eu vou/ atirar para ganhar
vou rematar/ e o golo que eu fizer/
ficará sempre na rede/ a libertar-nos da sede
não me olhes só da bancada lateral/ desce-me essa escada e vem deitar-te na grama
vem falar comigo como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos jogar


Quando/ tu me vires no music-hall
estarei no palco/ cabeça ao sol/ ao sol da noite das luzes/ à espera dum outro sol
e que os teus olhos os uses/ como quem usa um farol
não me olhes só dessa frisa lateral/ desce pela cortina e acompanha-me em cena
vamos dar à perna como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos bailar


Quando/ tu me vires na televisão
estarei no écran/ pés assentes no chão
a fazer publicidade/ mas desta vez da verdade/ mas desta vez da alegria
de duas mãos agarradas/ mão a mão no dia a dia
não me olhes só desse maple estofado/ desce pela antena e vem comigo ao programa
vem falar à gente como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos cantar


E quando/ à minha casa fores dar
vem devagar/ e apaga-me a luz/ que a luz destoutra ribalta
às vezes não me seduz/ às vezes não me faz falta
às vezes não me seduz/ às vezes não me faz falta

("Espectáculo", Letra e Músic de Sérgio Godinho in Afinidades, 2001)

23 de maio de 2010

Da ternura ou... intemporal José Mauro de Vasconcelos

— Mas que lindo pezinho de Laranja Lima! (...)
— Mas eu queria um pé de árvore grandão. (...)
Estava me sentindo o maior desgraçado da vida. (...) Sempre eu tinha que ser o último. Quando crescesse iam ver só. Ia comprar uma selva amazónica e todas as árvores que tocavam no céu, seriam minhas. (...) Emburrei. Sentei no chão e encostei a minha zanga no pé de Laranja Lima. Glória se afastou sorrindo. (...)
— Eu acho que sua irmã tem toda a razão. (...) Eu levantei assustado e olhei a arvorezinha. Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala.
— Mas você fala mesmo?
— Não está me ouvindo? - E deu uma risada baixinha.
Quase saí aos berros pelo quintal. Mas a curiosidade me prendia ali.
— Por onde você fala?
— Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater. Fiquei meio indeciso, mas vendo o seu tamanho, perdi o medo. Encostei o ouvido e uma coisa longe fazia tique... tique...
— Viu? (...) Monte no meu galho.
Obedeci. (...) Desci adorando o meu pé de Laranja Lima. (...) Glória chegou mesmo na hora em que eu o abraçava.
— Adeus, amigo. Você é a coisa mais linda do mundo!
— Não falei a você?
— Falou, sim. Agora se vocês me dessem a mangueira e o pé de tamarindo em troca da minha árvore, eu não queria.
Ela passou a mão nos meus cabelos, ternamente.
— Cabecinha, cabecinha!...
Saímos de mãos dadas.
— Godóia, você não acha que sua mangueira é meio burrona?
— Ainda não deu para saber, mas parece um pouco.
— E o pé de tamarindo de Totoca?
— É meio sem jeitão, por quê?
— Não sei se posso contar.

(José Mauro de Vasconcelos,  O Meu Pé de Laranja Lima, 1968)
Imagem de Catalina Roa, 2009

19 de maio de 2010

Amadeo, Amadeo...

(Amadeo de Souza-Cardoso, "Cozinha da Casa de Manhufe", 1913)
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Dos vários modelos de reconciliação, a frequência da cozinha de uma casa será por certo o mais antigo e o mais conseguido. Reconhcerá isto Amadeo quando pinta "Cozinha da casa de Manhufe", nesse calor de evocados convívios, solilóquios a que o lume crepitante faz companhia (...) dando ao diário fluir um gosto de coisa perfeita que se nos insere na pele.
(Mário Cláudio, Amadeo, 1984)

14 de maio de 2010

Protesto inexcedível contra o uso de estrangeirismos...



Este negócio de “I love you”
De “Mon amour”, ou de “Paris je t'aime”
Isso é conversa para estrangeiro
E não fica bem para um bom brasileiro
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É bem melhor, é muito mais bonito
Quando se ouve um rapagão aflito
Dizer baixinho junto da pessoa
“Você morena é um bocado boa”
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Um “adeuzinho” é mais interessante
Que um “Goodbye” falado em mau inglês
“Ó meu amor”, em vez de “Mon amour”
“Como te amo” e não “I love you”
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Não admito nem por brincadeira
Chamar dinheiro de ‘L’argent toujours’
É preferível dizer assim:
Eu 'estou alegre do tupiniquim'
Fica moreno, olha pra mim...
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("Conversa para Estrangeiro" interpretada na belíssima voz de Maria da Graça,
acompanhada pela graça de Ribeirinho, no inimitável "Pátio das Cantigas" de 1942)

12 de maio de 2010

Assim falou... Kaiser

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.......When your work speaks for itself, don't interrupt.
                                                     (Henry J. Kaiser)

(Rafael Murió, O tempo)

9 de maio de 2010

Do Coliseu à Argentina

Ontem, no Coliseu do Porto, viveu-se uma experiência sensorial irrepetível: ouviu-se, viu-se e sentiu-se Gotan Project (para os mais distraídos, note-se que o nome resulta da inversão silábica da palavra “tango”). De repente, o corpo transformou-se numa caixa de percussão: todo ele ressonância. A voz, tão aveludada quanto pungente, de Cristina Viallonga, provocava uma impressão vibrátil. Ora o violino, ora o piano, ora o acordeão… e toda a harmoniosa panóplia instrumental se destacavam alternadamente ou em uníssono. O coliseu foi um único e gigante órgão pulsante. E o enlevo foi tal, que não faltou lá nada. Pelos meus olhos passaram a Argentina, Buenos Aires, o Borges, Cortázar (a quem o grupo dedicou “Rayuela”), a Patagónia, Ushuaia - a mais austral cidade do mundo, Piazzolla … e essa inimitável e única “revancha”: “la revancha del TAN-GO”.
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PS: Agradeço a P. por generosamente me ter convidado

6 de maio de 2010

It's raining men...




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(René Magritte, Golconde, 1953)

"...when one sees one of my pictures, one asks oneself this simple question 'What does that mean'? It does not mean anything, because mystery means nothing either, it is unknowable."

4 de maio de 2010

The sound of silence...



Esta semana, no CultureLab, um blogue da "New Scientist", Deborah Blum apresenta três publicações alusivas à temática do silêncio: In Pursuit of Silence (George Prochnik), Zero Decibels (George M. Foy) e The Unwanted Sound of Everything We Want (Garret Keizer). Em comum, os três livros elevam o silêncio à categoria de bem precioso, advogando, no entender da autora do blogue, a fantasia de uma "golden bubble of silence". Aqui fica, pois, a partilha destas missivas e, porque não, a apologia (de uma adepta incondicional) da sonoridade do silêncio.


(Fotografia de "WickedNox" ou Cory Brooke)

1 de maio de 2010

Dia do trabalhador: tarefas inacabadas

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Acesso justo ao trabalho
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Trabalho digno para todos
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Igualdade salarial entre homens e mulheres
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Erradicação do trabalho infantil
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Integração profissional das pessoas com deficiência
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Extinção do trabalho escravo
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Segurança e saúde no trabalho... etc., etc., etc.

(Foto de Elise Amendola, 2008)